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Norma contábil 'limpa' balanço de elétricas
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) também está interessada e, até o fim do ano, pode refazer o manual de contabilidade do setor.
Josette Goulart
A reforma da contabilidade rumo às normas internacionais deve alterar profundamente a forma como as concessionárias de serviços públicos - elétricas e de rodovias, principalmente - serão percebidas pelos acionistas e investidores.
As alterações estão previstas em uma interpretação editada pelo Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade (Iasb), que vem causando uma polêmica de âmbito global, já que, em última análise, pode fazer desaparecer boa parte dos ativos fixos de companhias de grande porte, com ações negociadas no mercado.
Basicamente, se o poder concedente estabelece as tarifas, e elas forem parte principal da receita da concessionária, o ativo não deve estar no balanço da companhia. É do governo. Distribuidoras de energia estariam certamente nessa lista.
O Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) brasileiro deve colocar em breve sua interpretação sobre a questão em audiência pública, dentro do cronograma estabelecido para que o Brasil entre em linha com as normas internacionais a partir de 2010.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) também está muito interessada no tema e informou que até o fim do ano vai refazer o manual de contabilidade das elétricas.
De forma geral, as empresas parecem pouco preparadas para as mudanças e só agora começam a fazer testes em seus balanços para antever o impacto das novas regras.
A demora nos testes se deu pelo fato de ainda existirem muitas dúvidas, a começar por quais concessionárias se enquadrariam nas interpretações do chamado Ifric 12 - que é a sigla em inglês para a interpretação do Iasb - sobre a aplicação das regras internacionais em concessionárias de serviço público.
"O Ifric 12 é a pedra no sapato de todo mundo que trabalha em concessões", diz Sergio Romani, sócio da auditoria Ernst & Young.
As distribuidoras de energia elétrica estariam enquadradas, mas ainda não sabem dizer se a alteração será para melhor ou pior. Só sabem que será trabalhosa, segundo diz Lívia Baião, da Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia Elétrica (Abradee).
Já os investidores de grandes projetos de geração de energia vêm consultando os auditores sobre o assunto, já que é incerto o enquadramentos das geradoras. Um dos motivos do interesse é que as companhias poderiam antecipar contabilmente a distribuição de resultados (veja texto abaixo), alterando toda a realidade dos investimentos em projetos com longa fase de construção.
Para se enquadrar nas novas regras, as concessionárias precisam ter seus serviços, qualidade e preço controlados pelo poder concedente. Além disso, o contrato de concessão precisa prever a devolução dos ativos ao final do contrato. Encaixadas nas duas premissas, as empresas passam, então, a obrigatoriamente dividir seus ativos imobilizados em duas novas linhas do balanço. Uma de ativo financeiro, que será o valor estimado pelo órgão regulador de indenização dos ativos ao final da concessão. A outra nova linha é a de ativo intangível, que mediria a receita da empresa até o fim da concessão. A forma de mensurar receita também seria afetada pela adição da chamada receita de construção.
Iara Pasian, sócia da auditoria Deloitte, explica que essa é uma receita auferida durante o período de construção. Seria, grosso modo, como uma antecipação de receita futura. Isso traria também impactos fiscais, pois uma receita maior exige desembolso maior de PIS e Cofins. No caso das distribuidoras, há ainda uma dificuldade extra, já que essa receita de construção não é hoje reconhecida pela Aneel para fins de tarifa.
O papel do órgão regulador nestas mudanças será fundamental e preocupa o setor, que já antevê um aumento de pessoal em suas áreas de contabilidade. Os executivos temem, por exemplo, que a partir das novas regras tenham que elaborar um terceiro balanço, o balanço regulatório.
A Superintendência de Fiscalização Financeira da Aneel já está analisando o assunto para preparar um novo regulamento que entrará em audiência pública, segundo informou a assessoria de imprensa do órgão. Mas o tema ainda está apenas em fase inicial de discussão interna. De qualquer forma, a agência diz que vai alterar o atual Manual de Contabilidade e adaptá-lo ao Ifric 12 e ainda criar um Manual de Contabilidade Regulatório para o setor.
Iara Pasian, que também participa de discussões sobre o tema no Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon), diz que o assunto já está sendo discutido desde o final do ano passado entre os técnicos de contabilidade, mas só agora a alta diretoria das empresas começa a se inteirar do assunto. "E eles têm uma visão diferente da do contador", diz Iara. "Agora o assunto passa a ser estudado sob o foco de oportunidades de investimentos."
Geradoras poderão antecipar dividendos
As alterações mundiais nas regras contábeis das concessionárias de serviço público começam a chamar a atenção dos investidores em grandes projetos hidrelétricos. Se as empresas geradoras de energia forem enquadradas, já no período de construção das usinas será possível distribuir dividendos aos acionistas, mesmo sem nenhuma geração de caixa e mesmo que apenas um percentual pequeno das obras tenha sido finalizado.
Se as regras já valessem, os sócios da usina hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira, por exemplo, poderiam receber dividendos a partir deste ano, mesmo com apenas 7% das obras concluídas e mesmo sem um tostão de receita, já que a energia só começa a ser gerada no final de 2011.
Isso seria possível, contabilmente, em função da chamada receita de construção prevista nas novas regras. Ela é registrada a partir do início das obras e proporcional ao que é construído. Assim, registrando receita, o empreendimento já apresentaria lucro e poderia distribuir resultado. Como não existiria caixa real, a concessionária poderia tomar um financiamento.
Diante dessa possibilidade, o assunto que até então era tratado por contadores dentro das companhias, começa a chegar às mesas da alta hierarquia das grandes empresas de energia do país.
A sócia da Deloitte Iara Pasian conta que alguns clientes geradores de energia eólica e termelétricas chegaram a consultar sobre a possibilidade de se usar as novas regras para futuros projetos. Para eólicas e termelétricas, porém, existe o entendimento de que o Ifric 12 não se aplica, pois não existe no contrato a previsão de que os ativos terão de ser devolvidos ao poder concedente. O texto vale só para as hidrelétricas. Mas mesmo nesse caso existe a discussão sobre o outro ponto de enquadramento, que é a questão de definição de preço pelo poder concedente.
A grande dificuldade é que hoje, no mundo, não há ainda aplicação das novas regras para servir de modelo. "Pela primeira vez na história, o Brasil vai implementar uma norma ao mesmo tempo que os outros países", diz Iara. (JG)
Contexto
As Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS), emitidas pelo Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade (Iasb), trouxeram uma mudança significativa para concessionárias de serviços públicos, que pode significar a "perda" do que atualmente são ativos imobilizados nos balanços.
As IFRS não são um conjunto de regras detalhadas, mas conceitos que devem ser interpretados por quem as aplica ("essência sobre a forma"). Em assuntos complexos como o de concessões, as discussões tendem a envolver diversos participantes do mercado.
A questão das concessões vem causando polêmica e um comitê de interpretação do Iasb (Ifric) fez um pronunciamento, conhecido como Ifric 12, que estabeleceu alguns parâmetros que tentam definir quem controla o quê. Por exemplo, se as tarifas são estabelecidas pelo governo, e elas definem a maior parte da receita da concessionária, o ativo é do poder concedente.
Assim, em vez de um ativo fixo, o operador poderá, segundo a consultoria Ernst & Young:
- Reconhecer um ativo financeiro na extensão que tenha direito incondicional de receber caixa do poder concedente.
- Reconhecer um ativo intangível na medida em que receba o direito (licença) para cobrança dos usuários pelos serviços.
O consenso é que empresas de distribuição de energia e operadoras de rodovias estão enquadradas. Para empresas de geração e transmissão, ainda existem polêmicas.